Carolina Maria de Jesus ontem e hoje
Leia o artigo elaborado pela professora Germana Henriques Pereira para a Revista Mátria 2025
Publicado: 01 Março, 2025 - 09h02
Escrito por: Germana Henriques Pereira | Editado por: Germana Henriques Pereira
Carolina Maria de Jesus é no Brasil de hoje uma escritora cuja leitura é incontornável. Nascida por volta de 1914 em Sacramento, Minas Gerais, essa autora negra, descendente de escravizados, imprimiu em sua escrita um certo tom de provocação às elites brancas de seu tempo, mas também do nosso tempo. Explico: Carolina, de modo paradoxal, denuncia o racismo, a fome, a miséria que assolavam o Brasil e, em particular, a São Paulo dos anos 1950 e 60. Apresentada ao público leitor pela mídia, por meio do engenho do repórter Audálio Dantas, em 1960, Carolina continua desafiando a mediocridade que teima em se tornar a “base” representativa brasileira.
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Mulher, mãe de três filhos de pais diferentes, todos brancos, negra retinta, habitante da favela do Canindé nos anos 1950, na capital paulista, depois de ter perambulando por estradas, de ter trabalhado em casas da burguesia paulistana, Carolina é retirada do “quarto de despejo” para ganhar as manchetes de jornal do Brasil e do mundo, com o lançamento de trechos editados de seu diário, pela Livraria e Editora Francisco Alves, em agosto de 1960. O título, Quarto de despejo, que deu fama internacional à Carolina, teve um imenso sucesso de vendas, e continua sendo reeditado e traduzido no mundo inteiro até hoje. Não custa lembrar, o livro vendeu 100 mil exemplares em 1 ano, 600 no dia do lançamento e 10 mil na primeira semana, tornando-se um fenômeno cultural e literário. O que tinha nessa obra que chamou tanto a atenção do público dos anos 1960 no Brasil? E por que sua obra chama atenção até hoje? Vamos tentar responder em poucas palavras.
A voz autoral de Carolina de Jesus é forte e contundente, tensionada entre sua visão da sociedade brasileira e seu projeto literário, que almejava reconhecimento como poeta. Como poderia uma mulher em suas condições, com quatro anos de escola, tornar-se uma escritora no Brasil, ainda mais sendo mãe solo e negra? A autora não limitou sua escrita aos diários, mas se aventurou em poemas, canções, dramas e romances. Os trechos do diário em "Casa de Alvenaria" (Francisco Alves, 1961) e nas prolongações "Osasco" e "Santana", publicadas pela Companhia das Letras, em 2021, revelam sua vida antes e depois da fama, dentro e fora do país.
Essas obras revelam a contradição entre o sucesso alcançado com o primeiro lançamento e o que se espera dela na sociedade paulistana e no resto do país, enfim, o que ela representava para a instituição literária naquele momento histórico, mas também mostra sua desilusão com o meio literário e com o meio social que a acolheu num primeiro momento, Carolina resistia aos moldes pré-estabelecidos por uma sociedade que só poderia tolerar uma mulher negra escritora se agisse conforme suas regras e Carolina não era uma mulher obediente.
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Talvez por isso tenha se recusado a casar, pois, como afirma em Quarto de despejo, teria que ceder às normas impostas pelo machismo vigente: lavar, passar, cozinhar, dividir a cama e o corpo nos moldes impostos pelo marido ou companheiro, e ela, ela queria ler de madrugada, escrever com seu toco de lápis nos cadernos coletados em lixeiras ou doados.
A voz autoral da autora mineira ganhou forma na escrita constituída de linguagem feita na tensão entre oralidade, preciosismos, ou “o português clássico”, como ela gostava de dizer. Essas variantes do português brasileiro ganhavam forma por meio de uma sintaxe fraturada, em que as faltas de concordâncias, crases, ortografia remetem à sua condição de classe, de raça e de gênero, consequências estas da desigualdade social histórica que até hoje impera em nosso país, determinando o futuro de muitas gerações de afrodescendentes. Carolina supera as dificuldades do meio em que nasceu, rompendo a barreira da fatídica determinação social: sem os aparatos da educação formal, mas por meio do imperativo desejo de escrever, pelo letramento literário que alcança com autodidatismo, acaba por dominar uma forma literária, que é capaz de representar, como somente ela poderia fazer, por meio do testemunho da sua vivência em primeira pessoa, nas 4.500 páginas manuscritas de seus diários, a vida de uma mulher negra no Brasil.
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A linguagem de Carolina de Jesus, tal como ela é, entre preciosa e oral, entre testemunhal e poética, representa a força da sua literariedade. Corrigi-la só a transformaria em algo banal. Sua escrita, na verdade, mostra uma característica aguda da sua condição de gênero, raça, classe e de escritora poeta, além de ser representativa de seu tempo histórico.
O centenário de Carolina de Jesus em 2014 serviu de baliza para o resgate no país da importância histórica de sua obra. Caída no ostracismo durante a ditadura, a quem não interessava o depoimento contundente da autora, Carolina sobreviveu num pedaço de chão que comprou com o dinheiro de Quarto de despejo em Parelheiros na Grande São Paulo. Morreu pobre em 1977, confirmando o destino a que estaria condenada num país onde uma mulher negra não pode ocupar a “sala de visitas”, como ela dizia.
Após 2014, Carolina entra definitivamente no cânone brasileiro. Corrobora essa afirmação a publicação de sua obra integral na maior editora literária do país, a Companhia das Letras, com curadoria, entre outras pesquisadoras e escritoras, da filha de Carolina Vera Eunice e da importante escritora Conceição Evaristo. Entrou para as letras nacionais, apesar dos vãos protestos dos conservadores que a acusam de não saber escrever. A leitura de Carolina se torna hoje indispensável para quem quer minimamente estudar a história dos afrodescendentes no Brasil.
Por Germana Henriques Pereira*
*Germana é professora associada da UnB, onde leciona e pesquisa desde 1992. Foi diretora da Editora UnB de novembro de 2016 a outubro de 2024, além de coordenadora do mestrado acadêmico em Estudos da Tradução da mesma universidade. É pesquisadora em História da Tradução, Formação da Literatura Brasileira e Literatura Francesa.