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Sônia livre!

Conheça a história de Sônia Maria de Jesus, 50 anos, mulher negra e surda, resgatada em situação de trabalho análogo à escravidão em 2023

Publicado: 06 Março, 2025 - 16h49

Escrito por: Redação | Editado por: Redação

 

O Ministério Público do Trabalho de Santa Catarina recebeu uma denúncia anônima sobre uma situação de trabalho doméstico análogo à escravidão na casa do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), Jorge Luiz Borba. Após confirmar a robustez da denúncia, buscou a Auditoria Fiscal do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego para organizar uma ação fiscal. 

A ação fiscal ocorreu no dia 6 de junho de 2023. “Meia hora antes da equipe ir para a casa do desembargador, a informação sobre a ação fiscal vazou para a imprensa. Quando os fiscais, procuradores do MPT e MPT e o Defensor Público da União chegaram, então, já poderia ter acontecido alguma alteração no local. Ainda assim, a equipe encontrou o quarto onde Sônia Maria de Jesus dormia, fora de casa, em uma edícula mofada”, conforme relatado na Ação Civil Pública interposta pelo MPT.

Poucos dias depois da ação, Sônia foi levada para uma casa de acolhimento a vítimas de violência contra a mulher e permaneceu nesse espaço por apenas três meses, quando o ministro Mauro Campbell decidiu permitir que a família Borba se encontrasse novamente com a Sônia, “se ela assim desejasse”. 

“Isso causou muita surpresa. Primeiramente porque foi o ministro Mauro Campbell que analisou o processo e o inquérito, então, do Ministério Público do Trabalho, e que entendeu que a ação fiscal poderia ser realizada. Segundo, causa espanto porque Sônia, uma mulher analfabeta em português e libras, estava numa casa de acolhimento e ele permitiu que quem foi acusado de a escravizar a visitasse, o que não acontece na política pública e nunca havia acontecido”, ressalta Luciana Carvalho – Auditora Fiscal do Trabalho e Coordenadora Estadual dos projetos de Inclusão de Pessoas com Deficiência no Mundo do Trabalho, Combate ao Trabalho Infantil e Aprendizagem Profissional em SC pelo Ministério do Trabalho e Emprego que colaborou com a equipe que realizou o resgate para encontrar local seguro para Sônia residir, ter convivência comunitária e receber aulas de libras e português.

A Defensoria Pública da União entrou com um pedido de habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF) para que o encontro não ocorresse, que foi analisado pelo ministro André Mendonça, que revalidou a decisão do ministro Mauro Campbell. Nessa decisão, o ministro Campbell disse que se ela manifestasse a vontade de voltar, isso poderia acontecer, porque ela era “como se fosse da família”. Isso é um argumento que não existe no mundo do direito. Infelizmente o ministro André Mendonça liminarmente concordou com o argumento e a visita aconteceu.

Reencontro com a família originária 


“Na verdade, nós é que fomos encontrados. Ela foi levada da minha mãe aos nove anos de idade. E minha mãe viveu nessa busca árdua a vida inteira, até que ela morreu, em 2016”, conta Marta de Jesus, irmã caçula de Sônia. Ela relata que o primeiro reencontro com as irmãs mais velhas, Marlene e Cida, aconteceu em setembro de 2023, três meses depois de Sônia ser resgatada: “Foi bem conturbado. O encontro foi no prédio da Polícia Federal e estava marcado para acontecer das 10 horas da manhã ao meio-dia, mas aconteceu em 40 minutos, com muitas imposições, com muitas exigências por parte do desembargador [Jorge Luiz de Borba]. Inclusive, ele participou da primeira visita, junto com todo mundo”, ressalta.

Sônia tem seis irmãos que moram em Osasco (SP) e já estão organizados para recebê-la. “A gente entende que a Sônia tem demandas que precisam ser atendidas, por exemplo, alguém que esteja à disposição para levá-la a algum serviço médico, para as aulas de Libras e acompanhamento psicológico. Então, dentre os seis irmãos, a gente entende que é necessário que um de nós tenhamos essa disponibilidade para ficar com ela, e isso também já foi resolvido. Um dos irmãos, no caso a Marisa, vai ficar com essa tarefa de sair do trabalho e dar o suporte necessário, e os demais irmãos contribuem financeiramente”, descreve a irmã caçula.


Em busca da liberdade

O caminho para Sônia finalmente retomar para a sua família originária ainda é incerto. Após o resgate, a família Borba pediu a adoção de Sônia, o reconhecimento da relação socioafetiva e segue argumentando que ela é “da família”. 

“O argumento é sempre o bem-estar de Sônia, para negar que ela conviva com sua família originária. Isso vindo de pessoas que não deram educação para essa menina, que não deixaram que ela tivesse convivência comunitária, que não fizeram sequer os documentos dela. 

Sônia foi ter o primeiro documento em 2019, já com mais de 40 anos, foi ter plano de saúde em 2021”, indigna-se a auditora fiscal Luciana Carvalho. “A irmã caçula de Sônia, que geralmente fala em nome da família de Jesus, é formada em serviço social, tem um irmão que é técnico de segurança do trabalho. Todos os seis irmãos têm em comum que aprenderam a ler, a escrever, e estudaram, o que não aconteceu com a Sônia”, detalha.

“A gente tem a felicidade e a alegria de descobrir que ela está viva, entretanto, o caso da Sônia deixa explícitos as desigualdades sociais, as expressões da desigualdade social, porque é uma questão política, financeira, racial, de gênero, tudo se mistura, e o resultado é um só: quem pode mais tem direito a mais direitos, e quem pode menos tem direito de menos”, avalia Marta de Jesus. 

Para ela, a necessidade pode levar qualquer pessoa a uma situação de exploração: “Imagina uma pessoa deficiente que não fala, que não escuta, que não tem instrução, que nunca estudou, que nunca socializou com ninguém, que não sabe que tem família. Aí é uma situação que se perpetua se não tiver alguém que fale por ela”, analisa.

Mobilização

O movimento pela liberdade de Sônia conta com o apoio de diversas entidades de classe e movimentos sociais. “Precisamos de pressão. Pressionar para que o ministro André Mendonça envie o Habeas Corpus para a segunda turma do STF, para a segunda turma julgar com base nos autos (e libertá-la). Também reivindica para a Justiça do trabalho julgar a Ação Civil Pública garantindo os direitos trabalhistas de Sônia e para a Justiça de Santa Catarina julgar improcedente a ação de reconhecimento socioafetivo pleiteada pela família Borba”, resume Luciana Carvalho.

“Também é preciso pressionar para que a Justiça possa julgar em favor do auditor fiscal do trabalho Humberto Camasmie, que não violou sigilo profissional”, acrescenta.O Conselho Nacional de Justiça recomendou ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) que garanta o respeito aos direitos fundamentais da Sônia Maria de Jesus e ao STF que promova o julgamento de mérito do HC nº 232.303, assegurando prioridade na tramitação.

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) acompanha de perto o caso de Sônia. Segundo a ministra Macaé Evaristo, o caso expõe uma grave falha no sistema de proteção às vítimas de trabalho escravo doméstico, especialmente em situações envolvendo pessoas com deficiência. Além disso, o MDHC está em fase de reformulação do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, que incluirá protocolos específicos para populações em situações de maior vulnerabilidade.